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Existem certas ocasiões em que um homem tem de revelar metade do seu segredo para manter oculto o resto.
Philip Chesterfield
Forte nevasca se aproximava do vilarejo de Ek-thag, Beaumont Choiseul sentia isso em seus ossos. O vento frio lhe rachava os lábios. O passo era dificultado pelo grosso manto de neve sobre a calçada irregular. O docente, no entanto, se alegrava com isso, e ainda mais lhe impressionava que nem mesmo pelas janelas se enxergava rostos curiosos. Não queria que ninguém o visse, ou melhor, não queria sequer que alguém suspeitasse que estivera ali: nem o seu próprio mordomo, fiel empregado de anos, Antonie, tinha conhecimento de onde estava naquele momento – “Ele compreenderia, é claro, mas nem quero imaginar o que ele pensaria de mim se soubesse...” – e mesmo as suas vestes faziam transparecer tamanha discrição, pois, destoante do seu costumeiro terno cor-de-rosa e plumas multicoloridas, apenas um sobretudo e um chapéu bruxo (para cobrir os seus cabelos brancos) poderiam ser vistos por um ocasional observador – o que se justificava pelo frio que fazia. Sim, tudo fora premeditado!
Bateu duas vezes e entrou, sem mais. Um odor sufocante de carne podre pairava no ar, e mesmo a paisagem causaria náuseas a qualquer um não acostumado com este gênero de lojas. Beaumont sofreu todo o impacto ao adentrar na loja, mas se conteve e se dirigiu ao balcão com o inevitável porte aristocrático que havia em seu andar. Por nenhum momento abaixou a guarda: o sobretudo cobria até mesmo boa parte do seu rosto e o chapéu bruxo dificultava ainda mais o seu reconhecimento. As pernas no balcão, sentado numa cadeira velha de madeira, e com a cabeça escorada na parede, o dono da drogaria dormia – certamente ciente de que ninguém deveria visitar a sua loja num dia daqueles: – Herr Polliakov! – bradou o professor com sua voz naturalmente afetada, repetindo: – Herr Polliakov! É hora de negócios e não de sonecas, chuchu. – ao que o velho homem gordo acordou. Todos sabiam que ele era completamente careca, mas fazia questão de ocultá-lo com um chapéu-coco que, somado ao seus bigode grosso e loiro, dava-lhe um ar de comicidade. Levantou-se num ato brusco e enrusbeceu tão logo reconheceu quem era o seu cliente. Era conhecido por Herr Choiseul naquela região e não havia ninguém naquele vilarejo que não conhecesse e não fosse conhecido por Beaumont Choiseul. O velho se desculpou pela situação em que fora encontrado, alegando que era-lhe inimaginável que algum cliente fosse surgir com tamanha nevasca do lado de fora – e sem permitir delongas, Choiseul levantou a mão com a palma aberta em direção ao homem e a fechou. O homem ficou calado, e então o docente se pôs a falar: – Não se preocupe, Herr Polliakov, para todos os efeitos, eu não estou aqui. Aliás, você apenas tem uma vaga lembrança de mim, ursinho. Quem veio hoje é um completo estranho, excêntrico e introspectivo. E nas próximas vezes em que eu não vier aqui, será sempre o mesmo. O mais importante, na realidade, é que mande os ingredientes que eu escolher por uma coruja à meia-noite. Nem antes, nem depois. Eu o pagarei através dessa mesma coruja, portanto mande uma coruja INTELIGENTE. Já volto, coração. Vou ver ali o que quero. – e com a mesma amabilidade com que dissera essas palavras, agia ao tocar nos ingredientes. Parecia não saber nem ele próprio o que queria, tanto que às vezes fazia cara de nojo ao encostar em algo que demonstrava ser algo que ele não imaginava ser. Tudo o que selecionava, era colocado numa bolsinha de couro de briba. E foi quando ouviu, tal como na sua chegada fez, a porta bater e de repente se abrir. Imediatamente escondeu a bolsinha, fechou ainda mais o sobretudo e baixou mais o chapéu para ocultar o rosto: “Quem...?” – perguntou-se, tendo em vista que algumas estantes e armários impediam a vista de quem acabara de chegar. Ciente de que se esconder seria muito mais suspeito, foi para diante do balcão novamente e se virou para ver quem chegava (que, com sorte, seria algum desconhecido não-pertencente àquela região). A surpresa, no entanto, uma desagradabilíssima surpresa, lhe fez vibrar todo o corpo.
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MSN ou MP – sem OFFs.