Comparando a divisão de parágrafos entre o
post original, e este.
Annie parecia estar há milhares quilômetros de distância enquanto estava deitada com a cabeça no colo de sua amiga, nas sombras de uma árvore, olhando para o lago. Sentia o carinho suave nos cabelos soltos.
Era gostoso, mas… Não se sentia tão bem com todo aquele acúmulo de coisas passando por sua mente. Parecia sempre haver uma carga muito pesada para si, algo que não era capaz de lidar facilmente, nada parecia ser fácil a ela. E mesmo naquele momento calmo onde nada estava acontecendo e tudo deveria estar tranquilo, ela não conseguia escapar de si mesma e da teia complicada em que insistia em se prender.
Era pouco depois do Halloween ter passado, o que complicou ainda mais o que já estava complicado. Questões que evitava tinham voltado à tona com tanta força... Não era justo com a amiga que estava com ela que estivesse com seus pensamentos tão focados em outras questões, não era? Talvez o melhor a se fazer fosse voltar ao isolamento, à solidão que era tudo o que ela merecia. A americana não merecia que alguém lhe fizesse companhia, era isso que mais sentia com força.
— Sabe… Estou pensando que talvez eu deva… Ir… Para o salão comunal ou algo assim. — Sua voz mostrava um desânimo tão aparente. — Tem tanta coisa na minha cabeça que… Acho que eu não conseguiria ser uma amiga agora… Talvez eu deva… Ficar sozinha e… Tentar esvaziar minha mente pesada.
Deixou um suspiro escapar por seus lábios, olhando para ela agora. Tinha uma visão do rosto dela de um ângulo estranho. “Ela é tão diferente do irmão mais velho dela.” Pensou por um momento. Gostava do tom alaranjado forte dos cabelos dela... Era diferente e natural…
Escutou as palavras que saíam da boca dela. Falar sobre isso… Era algo que poderia realmente fazer? Tentou organizar os pensamentos que ocupavam o Top 3 em suas preocupações.
Haveria sempre aquele assunto do qual nunca poderia falar, mas havia também aquele outro assunto… O assunto que a atormentava desde o halloween, o assunto que tinha a forma de um garoto alemão com traços coreanos… Será que faria realmente bem desabafar com alguém? Não sabia exatamente como colocar certas coisas em palavras ou talvez seu problema fosse que admitir certas coisas as tornavam mais reais, apesar de que negá-las não estava tendo muita função…
— Bem… — Fechou os olhos por um momento, tentando colocar ordem na bagunça. — É complicado… Eu não sei bem por onde começar porque a história é muito longa… E… Mas… Eu posso tentar falar sobre isso. Só me deixe pensar por um momento… A bagunça aqui é maior do que eu poderia descrever exatamente.
Deixou sua mente trabalhar por um momento. Ainda sentia o toque dela em seu cabelo, o que na verdade ajudava um pouco a relaxar.
— Tem esse garoto. — Começou. — Bem… Você se lembra quando eu quis ir naquela mansão da Morrigan naquele festival? Eu andava evitando ele um pouco, mas… Ele estava lá, na mansão… Aparentemente porque queria me fazer companhia. Eu não sei bem porquê… Quer dizer… É complicado. Ele deveria estar com a namorada dele, mas… Ele estava ali. Então tudo voltou… Tudo o que eu andava ignorando está aqui de novo para me assombrar.
Abriu os olhos, se perguntando se o que estava dizendo fazia algum sentido para a outra. Provavelmente não, nem ela sabia se havia entendido o que tinha dito ali.
— Eu vou começar do começo, de quando eu o conheci… Nós tínhamos onze anos… — Sua mente vagou para aquele momento, onde estava sozinha fazendo suas primeiras compras para ir a Durmstrang, eles eram tão novos… — Ele foi a primeira pessoa que eu conheci, o primeiro bruxo, eu diria. Nós nos conhecemos na loja de artigos mágicos, eu estava comprando material para a aula e ele também. Depois disso… Nós nos encontramos em Durmstrang. Ele não era a pessoa mais fácil do mundo, mas eu gostei dele. Ele se tornou meu melhor amigo… E então ele se foi, para Hogwarts, mas mantemos contato, mais ou menos.
Várias lembranças inundaram sua mente enquanto ia contando de maneira vaga a relação que tinha com o garoto no início. — Nós só nos reencontramos no… Terceiro ano? Nas férias... É… Ele tinha me mandado uma carta, pedido para que eu encontrasse ele para tomar um sorvete.
Seus olhos se encheram de água quando pensou nos acontecimentos daquele dia antes de ir… Seu pai… Ainda era muito doloroso pensar nele. Engoliu o choro que queria se manifestar, não derramaria uma lágrima por aquele canalha. — O meu pai… Ele… Era agressivo. Ele me batia, muito. Eu estava machucada… Literalmente.
Seu olhar perdido fitava o nada, preso às memórias daquele tempo. — Naquele dia, eu fugi de casa para encontrar com ele… Esse meu amigo… E eu sabia que não podia voltar… Meu pai estava tão bravo comigo já e… Por eu ter saído, ele seria capaz até de me matar, eu sentia isso. Enfim, quando eu encontrei com Aiden, a gente conversou e ele não me deixou voltar para casa, ele se preocupou comigo, era visível o que meu pai fazia e ele não queria que eu tivesse de voltar para que ele me castigasse.
Era a primeira vez que dava nome à ele naquela história. Não dizer seu nome não iria fazer com que não fosse ele, então que motivo teria para negar?
Respirou fundo, hesitando antes de continuar. A história ficava mais pessoal ainda ali, mas sempre fora tudo complicado. — Enquanto ele me ajudava a cuidar de alguns machucados… A gente se beijou pela primeira vez. Talvez eu sempre tenha gostado dele ou talvez tenha sido ali que eu me apaixonei e eu achei que ele gostava de mim também… Mas… É… — Deu de ombros.
— Naquele ano… Após as férias… Eu fui para hogwarts. Eu odiei aquela escola desde a primeira vez que pisei lá, mas isso não vem muito ao caso. Ele estava estudando lá e era… Estranho vê-lo de novo por aí. Mas estávamos nos dando bem, então… Era tranquilo. Ele tinha uma amiga que eu não gostava, eu tinha ciúmes dela… Mas… Não é como se eu pudesse fazer algo. Então chegaram as férias…
Estremeceu ao lembrar de forma nítida os acontecimentos traumáticos daquelas férias. A tentativa de estupro… Os tiros… Os assassinatos. Por que se lembrava de tudo com tantos detalhes? Não queria… Não queria ter aquilo em sua mente. Se sentia insana cada vez que se lembrava daquilo. Se sentia suja, horrível. Mas aquela era a parte que nunca poderia mencionar, Aiden sabia apenas parte dela e só ele poderia saber.
— Então… Eu voltei para casa naquelas férias… E meu pai morreu. Eu só tinha ele de família. Eu não tinha para onde ir… Aiden me deixou ficar na casa dele. Foi a pior coisa que poderia acontecer. No início, parecia estar tudo bem… Mas depois… Ele sumiu. Passou a me ignorar. E começou a namorar com aquela estúpida amiga dele que eu detesto. — Piores férias da vida de alguém? Com toda certeza.
— O ano que se seguiu na escola, que na verdade foi ano passado, eu não estava bem. Eu não estava nada bem. Eu não conseguia dormir, eu estava constantemente deprimida, eu via coisas que não estavam realmente lá. Eu perdi o controle de um modo que nunca tinha acontecido antes. Eu fiz muita merda. Eu me droguei, quase tive uma overdose de calmantes, eu me cortei. — Mostrou o antebraço onde aquela enorme cicatriz tinha ficado para marcá-la eternamente. Para fazer parte de sua longa coleção de marcas que a vida tinha lhe dado.
Tornou a cobrir o antebraço com a manga comprida da roupa que vestia. — Eu não via Aiden mais… Ele tinha se afastado completamente de mim, me evitava, me ignorava e não me dizia porquê. Eu estava passando por tanta coisa e ele… Não estava lá para mim. Isso me machucou muito… Eu sentia falta dele o tempo todo. Eu não tinha amigos naquela escola de merda, eu me sentia completamente sozinha. Principalmente porque eu ainda me sentia um lixo com a morte do meu pai e tinha aquela constante preocupação de “para onde eu iria?”. Eu ainda não tinha para onde ir. O ano inteiro passava como uma grande incerteza. Eu já estava me preparando mentalmente para vagar pelas ruas quando o final do ano letivo se apresentasse.
Lembrar de tudo aquilo fazia sentir uma dor emocional tão grande, tudo voltava com uma dor assustadora que não queria sentir, algumas lágrimas teimosas correram pelo seu rosto sem que conseguisse conter elas. — Então veio as férias… O caminho de volta do trem foi carregado de “é agora que vou ter de achar uma caixa de papelão para chamar de lar”. Mas… Eu não precisei chegar a isso.
Deveria continuar contando? Contar tudo? Phillipa era uma boa ouvinte para as tragédias que estava contando, mas devia mesmo descarregar tudo em cima dela desse jeito?
Já tinha começado mesmo, então… Tinha de terminar. Não seria justo interromper-se no meio e não chegar ao fim dessa história. Até porque tinha de entrar no mérito do que atormentava sua mente. — Na estação, eu descobri que a madrasta do Aiden, uma mulher que ele detesta desde sempre, era minha mãe biológica.
Notou que um detalhe importante tinha sido deixado de fora. — Eu não comentei, devia ter falado no início, eu cresci tendo apenas meu pai, minha mãe tinha nos abandonado enquanto eu ainda era um bebê. Eu não sabia quem ela era, como ela era, nem mesmo seu nome. Foi um choque descobrir que ela esteve tão perto o tempo todo e não foi nem ao menos capaz de me contar, porque ela sempre soube quem eu era.
Essa questão ainda doía também, havia muito que a machucava em toda aquela história. Não sabia como era capaz de aguentar tanta dor e ainda continuar tentando viver. — Então eu fui morar com eles com meu título oficial de “a filha bastarda da dona da casa”. Agora eu entendia porque o pai do Aiden me olhava de um modo estranho no ano anterior, ele já sabia quem eu era… E eu descobri mais tarde, conversando com o Aiden, que ele tinha me evitado, fugido de mim que nem o diabo da cruz, porque ele estava sendo ameaçado pela minha mãe. Ela queria muito ele longe da adorável filha dela. Ela me deu seu sobrenome e eu consegui me livrar do do meu pai, que trazia toda uma carga de dor com ele. Mas enfim…
— Eu viajei nas férias, fiquei com uma amiga, ou quase isso, sei lá, ela convidou e eu me agarrei à oportunidade só para não ficar naquela casa. Eu reencontrei Aiden nas férias, enquanto passava por um atendimento por causa do Survivor, um jogo onde eu quase morri por causa de uma névoa tóxica. — Tinha ficado tão pouco tempo naquele jogo, uma pena.
— Ele é estagiário no hospital há algum tempo e o destino me colocou justamente na tenda que ele atendia, de todas as que poderia pegar… Nós tivemos uma conversa e ele mostrou se preocupar tanto comigo que meu tolo coração se sentiu minimamente amado. — Se odiava por isso. — Eu sentia que precisava ficar longe dele, então quando descobri que ele estava aqui para intercâmbio, eu fugi dele. Eu evitei ele. Mas então veio o halloween, que por acaso é no dia do meu aniversário. Ele me deu um presente… Ele… Largou a namorada no meio daquele festival só para me acompanhar na mansão… O meu coração apaixonado não consegue lidar com ele de forma indiferente. Eu realmente o amo. E ele está com aquela garota ainda… Ele gosta dela, de fato. E eu… Não tenho nada além de um sentimento que me faz sofrer para me agarrar. Tudo voltou com tanta força por causa do gesto nele. Eu não quero sentir essas coisas, mas eu não posso evitar. Eu não consigo não gostar dele… Eu não consigo eliminar ele da minha vida. Ele não me deixa fazer isso. E dói. Muito.
Sua voz era carregada de mágoa, mais lágrimas teimosas escorriam por seu rosto. Estava sofrendo e estava escancarando isso na frente de sua amiga. O que ela iria pensar dela? Mas tinha ido, realmente precisava falar sobre aquilo antes de enlouquecer.
— Então é isso que se passa aqui… Desculpe por descarregar tudo em você. Eu acho que talvez eu nunca vá ficar bem… — Suspirou e ficou em silêncio. Já tinha falado demais.