Não interpretem isso de forma errônea, mas o fato é que era bem verdade que Kit estava praticamente saltitando de empolgação enquanto arrastava Uriah pela rua em direção aquela onde se encontrava a sorveteria vista mais cedo. Mas não era que ele estivesse só desesperado demais por um doce e teria aceitado-o de qualquer estranho.
Não, não era isso, ele poderia jurar pelos primos mortinhos – ok, talvez não pelos primos mortinhos, mas por todas suas revistinhas raras? – que realmente havia gostado daquele menino e estava feliz pela ideia de passar mais um tempinho com seu novo amigo falando sobre trivialidades antes de voltar pra casa. O sorvete era apenas um... Bônus, digamos assim. Uma forma de melhorar consideravelmente algo que já estava bom de qualquer jeito.
O único porém era que, talvez devido a sua animação desmedida, ele houvesse se esquecido momentaneamente de alguns fatores muito importantes como, hã não sei, deixa eu ver, talvez o fato do seu companheiro ser cego! E ele estar puxando-o descuidadamente pelo braço a uma velocidade um tanto acelerada demais para um menino que não podia ver em uma rua feita de pedras. Ele estava praticamente pedindo para fazer o ruivo tropeçar e dar com a cara no chão.
Devido a todas essas coisas, não deveria ter sido uma surpresa para ele quando o outro rapaz pediu educadamente que ele diminuísse o ritmo, mas foi. Dando-se conta de repente do quanto ele estava perto de causar um acidente fatal (?) em menos de dez minutos de amizade sincera e sem interesses de sorvete envolvidos, o rapazinho sentiu a culpa terrível assolá-lo mais uma vez.
— Claro, claro! Ai, Uriah, me desculpa, por favor. Não foi por querer, eu juro, é que eu sou tão distraído que... — Começou, tomado pelo nervosismo, já imaginando que o menino iria retirar seu convite a qualquer momento e ir correndo para os braços de seu guarda costas.
Felizmente, Uriah não parecia tão perturbado a esse ponto, e até sorriu pra ele, o que produziu instantaneamente um alivio indescritível.
— É claro, você está absolutamente certo. — Disse então, talvez deixando um pouco de seu embaraço transparecer na voz, além daquele que já cobria suas bochechas de vermelho. Estava quase feliz pelo outro não poder ver aquilo.
Conforme solicitado, diminuiu a velocidade, observando com curiosidade enquanto o menino desdobrava uma bengala. Estava ainda mais parecido com o Demolidor agora, e ele precisou morder ligeiramente os lábios pra impedir-se de deixar o comentário escapar. Kieran havia explicado que alguns bruxos não entendiam absolutamente nada de “cultura trouxa”, e ele não sabia o quanto aquilo poderia ou não se aplicar ao novo amigo, de modo que achou melhor não acabar ofendendo-o por acidente.
Ao invés, experimentou chamá-lo pelo novo apelido oferecido, sequer tentando manter distante do rosto a expressão de desgosto pelo fato de o outro saber que Kit era o apelido para algo pior. Mas não era como se ele pudesse ver de qualquer forma.
— Uri. — Repetiu, apenas para testar como soava. Tinha um “gosto” agradável em sua boca ao pronunciá-lo. Aquilo o fez deixar de lado a careta, e retomar o habitual sorriso.
Caminharam durante mais alguns minutos, até finalmente o loiro conseguir avistar o paraíso na Terra que era a sorveteria. Ele tinha certeza de que se pudesse olhar em um espelho, veria seus olhos brilhando de excitação. Também não teria ficado surpreso caso estivesse babando um pouco.
Esperou calmamente o amigo – por que, em sua cabeça, era assim que já o considerava – fazer seu pedido, antes de analisar suas próprias opções em busca das mais baratas possíveis. Sim, ele era uma criança louca por um sorvete, mas ele não iria abusar da situação, por mais que parecesse que Uriah não se importaria muito com isso. O garoto até dissera aquilo, mas ainda assim...
— Só uma bola normal de chocolate, por favor. — Pediu, sorrindo amavelmente para o ruivo a fim de assegurá-lo que estava tudo bem e ele só queria aquilo mesmo, antes de se lembrar que ele não podia ver, se dar um tapa mental, e apertar levemente a mão do companheiro ao invés em um gesto que ele esperava transmitir a mensagem, antes de se soltarem pra que o outro pudesse pagar.
Kit não pode evitar um suspiro baixinho, ao observar a forma descuidada com que o outro simplesmente tirava moedas e punha-as no balcão. Ah, se ele pudesse...
Caminharam por fim até uma das mesas, onde sentaram-se um de frente para o outro e logo Uriah havia retornado a falar sobre Hogwarts, e parecia tão empolgado que era quase palpável no ar, e acaba fazendo com que o próprio Kit sentisse-se assim também.
— Ah sim. — Confirmou em vista da pergunta do rapaz. — Elas tem vida própria ou coisa parecida. É como se simplesmente se deslocassem quando dá na telha. Ai você acha que vai ir parar em um corredor determinado, e, quando se dá conta, está do outro lado do castelo. Dependendo da sua pressa por ser realmente irritante, ou, no meu caso, realmente divertido por que amo explorar os lugares novos onde vou parar.
Então, como que em uma súbita inspiração, apressou-se em acrescentar:
— Mas você não precisa se preocupar muito com isso. — Por que deveria ser uma preocupação, não deveria? Pra ele era sempre como “ah, as escadas estão mudando de novo, acho que vai dar no corredor norte”, mas, para alguém cego, deveria parecer apavorante. Simplesmente sentir a estrutura tremendo abaixo de seus pés, sem fazer ideia da direção onde iria acabar. — Quer dizer, eu posso te ajudar se você quiser.
Isso era uma garantia que ele não tinha como cumprir exatamente. Não havia como ter certeza que eles fossem mesmo se encontrar de novo em Hogwarts, pois o castelo era tão grande e tinha tantos alunos que você poderia facilmente passar os sete anos letivos inteiros sem conhecer sequer metade das pessoas ali, e não havia como saber em que casa Uriah iria parar, mas... Ainda assim, ele esperava que suas palavras se provassem verdadeiras com o tempo.
— A floresta proibida é... Proibida. — Não, Kit, você jura?! Eu achava que o “proibida” no nome estivesse ali apenas de enfeite. Parabéns por esse ensinamento tão sábio. — Quer dizer, isso é óbvio, mas a questão é que ela é proibida por causa de todas as criaturas perigosas que há por lá. Como, realmente perigosas, de verdade. Do tipo que poderia matar você.
Mas aparentemente Uriah já sabia disso, ou, pelo menos em parte a julgar por suas palavras seguintes.
— Se eu já tivesse visto um lobisomem, acho que não estaria aqui pra te contar essa história, então... Não vi, e, sinceramente, espero nunca ver. A não ser que tenha sido em sua forma humana, mas ai eu não sabia que estava vendo um e provavelmente nunca vou saber. — Ponderou. — Quantos aos Centauros, eles passeiam próximos ao castelo às vezes e dependendo do humor até vão conversar com algum dos professores, eu acho. Mas você pode sempre ouvir toda sorte de barulhos estranhos vindo de lá.
Silenciou-se por um momento, encarando o rapazinho ruivo de modo pensativo, depois soltando um suspiro desanimado sem que soubesse exatamente o por que.
— Me desculpe, eu... Ainda sou muito novo em toda essa coisa de mágica. Queria ser de mais ajuda, mas... Mesmo depois de um ano em Hogwarts, ainda não conheci tantas coisas sobre esse mundo, eu cresci no meio dos Trouxas, sabe? — Abaixou a cabeça ligeiramente, sentindo um abatimento anormal tomar conta de seu corpo. — Eu acho que você poderia ter arranjado uma companhia melhor e mais útil em questões bruxas pra um sorvete do que eu.
Estava começando a sentir-se realmente inútil e pra baixo, mas felizmente o outro rapaz não parecia concordar muito com aquela opinião em particular. Acabou sorrindo novamente, em vista de sua resposta, e especialmente devido à confirmação de que o rapaz – assim como ele – também já o considerava um amigo.
— É verdade que tudo parece maravilhoso e surpreendente em vista ao que estou acostumado. — Concordou, ouvindo Uri falar por um segundo e então antes que pudesse impedir-se, sua curiosidade acabou levando a melhor sobre ele. — Se não se importa que eu pergunte... De onde você é? Percebi que não é daqui, você tem um sotaque engraçado.
E então arregalou seus olhos de repente, tomado pelo pânico, percebendo o que dissera e temendo ser mal interpretado.
— N-não no mau sentido de engraçado, quer dizer, não estou fazendo piada dele nem nada, é um bom engraçado, quer dizer, na verdade, é realmente fofo.
Maravilhoso, Kit! Excelente escolha de como concertar uma situação tornando-a ainda pior. Fofo, sério? Naquele momento seu rosto estava tão vermelho que quase se equiparava a cor dos cabelos de sua companhia.
— Quer dizer... Eu acho que vou só calar a boca agora. — E ocupou-se em tomar o sorvete ao invés, o que parecia uma opção muito melhor e mais aceitável do que correr o risco de continuar falando, e acabar dizendo algo ainda mais embaraçoso.