Middleton, 19 de Fevereiro de 2019.

Querido diário,

Como eu posso começar a explicar o que aconteceu hoje...

Pra começar, hoje é meu aniversário e esse é o dia oficial do ano em que as coisas mais absurdas encontram uma desculpa formal para acontecer comigo - como se a minha vida já não fosse suficientemente repleta de acontecimentos estranhos.

Quando acordei hoje de manhã, entretanto, senti algo de diferente. A luz do céu matinal, dublado, entrava pelas frestas da cortina e iluminava meu quarto. Abri os olhos lentamente, e encarei o ambiente ao meu redor como se o visse pela primeira vez. As paredes em tom de oliva, a mobília em madeira envernizada, a pequena prateleira com livros... virando um pouco a cabeça para cima, notei o apanhador de sonhos preso à cabeceira da minha cama.

Fiquei ali, encarando aquele objeto peculiar. Basicamente, um arco circular de madeira sustentando linhas grossas que, com seu padrão entrelaçado, formavam uma espécie de teia. Do arco, pendia uma espécie de penduricalho repleto de penas de aves exóticas, além de um cristal lunar, pequeno e delicado.

Perdi a noção do tempo. Talvez tenham se passados cinco minutos, ou quem sabe uma hora inteira. Percebi que não conseguia me lembrar do que eu havia sonhado na noite anterior - um sinal de que, muito provavelmente, o apanhador de sonhos estivesse cumprindo bem sua função.

Decidi me levantar, finalmente. Desvencilhei-me do cobertor, sentando no colchão e firmando os pés no chão. Graças às meias de algodão, não senti o impacto do assoalho frio sob meus pés. Levantei-me, caminhei até a pequena penteadeira onde um pequeno espelho se sustentava entre hastes de mogno. Olhei para a imagem refletida. Uma menina magricela, com o rosto pálido e fino, me encarou de volta. Seus cabelos castanhos e cacheados tinham quase a mesma tonalidade que seus olhos.

- Onze anos, hein? Dá pra acreditar? - disse ela, copiando o movimento dos meus lábios.

Sorri para a garota. Ela ajeitou os cabelos, curtos, e sorriu de volta. Dei-lhe uma piscadela e, em seguida, saí porta a fora.

Meu quarto fica no segundo andar. No mesmo corredor, há um banheiro, um quarto de hóspedes e o quarto de minha mãe. Cassandra Nightingale - OU Cassie, como ela prefere ser chamada - é simplesmente minha pessoa favorita no mundo, e não digo isso só porque ela é minha mãe.

Você teria adorado conhecer meu pai, também. Mamãe diz que ele foi o homem mais corajoso e gentil que ela conheceu. Infelizmente, ele morreu quando eu tinha seis anos. Papai era policial, então você pode imaginar... Às vezes, quando estou quase dormindo, perdida no meio do caminho entre o sonho e a consciência, eu sinto que ele - meu pai - senta na beirada da minha cama e beija minha testa, carinhosamente.

- Boa noite, Alice - ele diz.

Eu gosto de pensar que, de alguma forma, ele continua protegendo eu e mamãe. E eu sei que ela, minha mãe, ainda guarda um espaço em seu coração que sempre será dele. E isso é curioso, porque este espaço preenchido é o maior vazio que ela guarda dentro de si mesma.

A medida em que vou descendo as escadas, o cheio de canela me recepciona e envolve. Passo pelo pequeno hall de entrada e empurro a porta da cozinha.

Minha mãe está de pé, diante do fogão. Está segurando uma colher de pau, enquanto mistura algo dentro de um pequeno caldeirão. A mistura exala um cheiro doce e amadeirado, e exala um vapor denso que escapada pelas bordas do caldeirão.

- Bom dia, meu anjo - mamãe diz, ainda de costas.

- O cheiro está maravilhoso!

Ela para de misturar a poção e repousa a colher sobre as bordas do caldeirão. Então se volta para mim. Minha mãe é uma mulher alta, esbelta, com cabelos negro-azulados e olhos acinzentados.

- Fico feliz que você tenha gostado!

Mamãe diz tudo isso enquanto tira a varinha de um bolso em seu avental.

Ela sorri e, como um artista que pincela uma tela, ela agita a varinha no ar. Imediatamente, vários girassóis surgem flutuando no ar. Eles se entrelaçam pela cozinha, como uma decoração de festa. Acompanho tudo, simplesmente extasiada, até que meus olhos recaem sobre a mesa da cozinha. Um belíssimo bolo, decorado com glacê branco, está perfeitamente posicionado sobre um refinado prato de porcelana, onde girassóis estão pintados.

Deixo um sorriso preencher meu rosto. Corro até mamãe e a abraço. Ela me acolhe, beijando o topo da minha cabeça.

- Feliz aniversário, querida!

Juntas, sentamos à mesa. Com um novo aceno da varinha, mamãe conjura onze pequenas velas de aniversário, verdes, sobre o bolo.

- Faça um pedido!

Eu fecho os olhos. Mamãe não precisa usar a clarividência para saber o que estou prestes a desejar. Assopro com intensidade, sentido que algo no ambiente muda - e dentro de mim também. Quando abro novamente os olhos, todas as velas se apagaram. A fumaça sobe pelo ar como um pequeno véu cinzento mergulhado em água.

Mamãe está olhando para mim. De alguma forma, ela sorri com os olhos. Em suas mãos, está um pequeno envelope de papel pardo.

- Não acredito!

Estendo os braços, empolgada. Mamãe me entrega o envelope. Eu o abro com entusiasmo, quase sem conseguir me conter. Passo os olhos atentamente entre as frases da primeira linha e, então, grito de empolgação.

Mamãe deixa escapar um sorriso.

- Prezada Srta. Alice Jane Nightingale, temos o prazer de informar que a senhorita possui uma vaga na Academia Beauxbatons de Magia e Bruxaria.

- Parabéns, querida!

Eu levanto e abraço mamãe. Ela retribui, com carinho.

- Sonho com este dia desde que eu era pequena.

- Eu sei!

- Não consigo acreditar que finalmente está acontecendo! - estou muito empolgada - Mamãe, eu vou ser uma bruxa, igual a você!

- Você vai ser ainda melhor, acredite!

Não consigo deixar de sorrir. Por um segundo, esqueço completamente os pesadelos dos últimos meses. As nuvens tempestuosas, o céu enegrecido anunciando uma tempestade. O espelho, onde uma outra Alice, mais velha e totalmente vestida de preto, me olha fixamente. Seus olhos são vermelhos como sangue e o cabelo esvoaça com o vento furioso.

De repente, é como se a alegria se esvaisse do meu peito. O sorriso se desmancha em meu rosto. Eu me sento devagar. Mamãe também fica séria. Ela estende o abraço e segura minha mão com carinho.

- O que foi, querida?

Eu não respondo de imediato. Na verdade, evito encarar seus olhos. Eles me fazem perder a capacidade de dizer qualquer coisa que não seja a verdade.

- É o sonho, não é? - ela me encoraja.

Eu concordo com a cabeça, ainda sem dizer nada. Mas então sinto duas espessas lágrimas descendo pelas minhas bochechas. Mamãe se levanta e, em seguida, se abaixa à minha frente, me abraçando.

- Estou com medo, mãe.

- Está tudo bem, meu amor.

Ela coloca meu rosto entre suas mãos, e me faz olhar profundamente em seus olhos.

- Alice, me escute com atenção - ela diz - Você nasceu com um dom muito especial. Você é capaz não apenas de ver o seu futuro, mas também de alterá-lo. Esses sonhos não determinam quem você vai ser, meu anjo. São as virtudes em seu coração, e as suas escolhas acima de tudo.

- Mas e se eu escolher errado, mamãe? E se eu me tornar uma pessoa ruim?

- Deixe que seu coração guie você. Se o caminho se tornar sombrio, acenda sua própria luz.

- Mas e se eu falhar?

- Então lembre-se quem você é, Alice.

As palavras de minha mãe ecoam profundamente dentro de mim. De alguma forma, elas criam entalhes em minha alma é meu coração, como um encantamento que um dia, há de ser entoado no momento certo.

Mamãe e eu nos abraçamos.

- Seu pai teria muito orgulho de você. Tenho certeza de que ele te assiste e que cuida de você a todo o momento.

- Às vezes, eu sinto ele aqui, com a gente.

- Ora, e quem disse que ele não está?

Mamãe sorri, então ajeita meus cabelos e beija minha testa. Em seguida, ela se senta à mesa novamente. Pega uma espátula e um prato.

- E então, para quem vai o primeiro pedaço de bolo?