Ela se lembrava bem da dor.
Foi o que mais sentia em sua vida. Emocional e física. Foram poucas as vezes que se importou, poucas vezes demonstrou carinho e amor por algo ou alguém. Porque sempre era a dor que estava ali. Era a fachada de princesa de gelo que ganhava. Era sua armadura.
Ela se lembrava do amor fraterno pelo irmão mais velho.
Lembrava de sua adoração pela patinação.
E a paixão adolescente dos tempos de escola.
Mas no seu mundo tudo era descartável, usado contra ela. Então trancou-se em si mesma. Seus gostos, seus desejos, seus sonhos. Foi assim que viveu. Ou melhor, sobreviveu a própria família, as leis que regiam aquela mansão.
Controlada. Usada. Uma arma. Era tudo e nada ao mesmo tempo, seu nome apenas uma marca social para eventualidades. Não por amor. Não por reconhecimento, ela não era reconhecida. Pelo menos em sua maioria. Isso deveria chateá-la, mas não se incomodava. Se protegia disso. Das mágoas.
Havia outra coisa que ela lembrava.
Do frio.
Da dor.
Do medo.
E do desejo de vingança.
Lembrava da fuga, daquela chama de liberdade. Dos dois anos de fugas, de vida, de respirar e então a imagem final. Seu dia final.
Era um dia como outro qualquer, ela se lembrava. Seu cabelo, dourado como ouro, agora eram como asas de um corvo, preso em um coque, enquanto seus pés, presos nas lâminas de seus patins, deslizavam pelo gelo. Treinava para algo importante. Eram movimentos belos, chamativos e delicados, os quais compunham a melodia.
Ah, ela se lembrava da melodia que abafou o tiro que lhe tirou a vida.
Stay Close to me.
A melodia italiana com significação/compreensão dúbia era bela, e arrancava todos os sentimentos então guardados no coração gelado da russa.
Então veio o primeiro tiro… A queda, novamente a dor tão conhecida. Tanto quanto a letra da música.
[i]Sento una voche che piange lontano
Anche tu sei stato forse abbandonato
Òrsu finisca presto questo calice di vino
Inizio a prepararmi
Adesso fa' silenzio[/i]
Os passos calmos que ela reconheceu tão facilmente, deslizavam pelo gelo, caída, ela apenas ela ergueu o olhar, notando a face do irmão, a face banhada em lágrimas que era estranho ver.
[i]Con una spada vorrei tagliare
Quelle gole che cantano d'amore
Vorrei serrar nel gelo le mani
Che esprimono quei versi d'ardente passione[/i]
As palavras. Ela não lembrava delas. Mas sabia que sorriu com compreensão. Sem culpa, sem dor.
[i]Questa storia che senso no ha
Svanirà questa notte assieme alle stelle[/i]
Ela sabia que era seu fim, mas não temia. Sorria, como nunca sorriu antes na presença do mais velho.
Havia dor naquele olhar prateado com leves salpicados de azul dele, e isso era estranho, mas ela entendia. Não gostava, mas foi criado assim. Foram criados assim.
[i]Se potessi verdeti
Dalla speranza nascerà
L'eternità[/i]
Ela lembrava de dizer algo, mas não sabia o que, e aquilo o fez chorar mais, a mão tão acostumada a segurar a varinha, espadas, facas, e agora aquela pistola, tremiam.
[i]Stammi vicino
Non te ne andare
Ho paura di perderti[/i]
Com dificuldade ela se ergueu, arrastou-se até o mais velho, pegando as mãos trêmulas nas suas, guiando a arma para seu peito, firmando enquanto seu pequenino dedo se enlaçava ao do outro no gatilho.
“Me abrace. Fique comigo até o fim, como Sergei sempre esteve”
Isso ela lembrava de dizer, lembrava de o abraçar, sorrir e dizer aquelas palavras que eles não deveriam dizer. Que não deveriam sentir.
[i]Le tue mani, le tue gambe
Le mie mani, me mie gambe
I battiti del cuore
Si fondono tra loro[/i]
Um único som. a mancha crescente em vermelho no vestido branco, um agradecimento. Dor. E frio eterno.
[i]Partiamo insieme
Ora sono pronto[/i]
Ela sempre estivera pronta.